| DEUSA IARA
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Quando a feiticeira Circe, aconselhou Ulisses à amarrar-se no mastro de seu navio e tapar com cera as orelhas de seus marinheiros para que não pudessem ouvir o cântico das sereias, já se tinha notícia do perigo das suas doces vozes e de quanto elas eram fatais.
Mas quem eram estas sedutoras e encantadoras criaturas, cujo canto não resistiam os homens e atendendo aos seus apelos eram mortos e devorados?
As Sereias estão associadas ao grupo das divindades da morte, como as Harpias e Eumênides. Segundo a lenda, viviam no litoral sul da Itália. Possuíam à princípio, o corpo de um pássaro com busto e rosto de mulher. Mas com o tempo mudaram sua aparência. A metade pássaro de seu corpo foi substituída pela cauda de um peixe.
Na antiguidade, seu mito ligava-se ao culto dos mortos. Isto também mudou e apenas o documentam as estátuas de sereias nos sepulcros.
A Sereia apareceu no Brasil trazida pelo colonizador português e já chegou aqui como sendo uma mulher-peixe, registrada no fabulário ibérico de século XV. O sincretismo deu-se facilmente somando-se ao conhecimento indígena, surgindo a Mãe D'Água, como uma das muitas mães de concepção das tribos aqui presentes. Mesmo assim, estes registros não são tão antigos, pois não foi encontrado nada a respeito nas crônicas do período colonial. Não se conhece nenhum documentário brasileiro fazendo menção à mãe d'água, moça bonita de cabelo loiro e olhos azuis, senão na segunda metade do século XIX. Mas daí para cá, são inúmeros os relatos.
Em Portugal, de onde nos veio o mito, há duas designações para essa personagem mítica: no litoral do continente, Sereia. E, no arquipélago dos Açores, Feiticeira Marinha. As cantigas populares fazem referência a uma ou a outra:
"Lá no meio desse mar
saiu-se a senhora Sereia
lá no palácio d'el rei"
E nos Açores:
"Escutai se quereis ouvir:
ouvi um rico cantar;
devem ser as Marinhas
ou os peixinhos do mar."
Para nós, a Mãe D'água, apresenta-se sob diferentes nomes e formas e até mesmo sexo: Iara, Iemanjá, Boto.
LENDA DA IARA E JAGUARARI
Jaguarari, o filho do tuxaua dos manaus, era belo como as frescas manhãs de sol nas águas do Grande Rio. Tinha a força e a destreza do puma que domina a mata brava, mas muito o excedia na audácia em perseguir a caça e afrontar o inimigo.
Quando ele navegava na sua igara (canoa), deslizando sobre as águas silenciosas, que a proa, como a asa de um pássaro, apenas frisava, as graças ariscas, por vê-lo, não fugiam da beira do rio, e os jacamins vinham saudá-lo roçando os peitos no chão.
Nas grandes festas com que as tabas dos manaus, reunidos ao rufar do trocano, celebravam a admissão dos mancebos à fita dos guerreiros, nenhum jovem igualou Jaguarari na altivez do porte, nem na agudez da vista, nem na firmeza do braço.
Os velhos o respeitavam, as moças o amavam, os guerreiros o admiravam e nos seus cantos o nome de Jaguarari soava como o daquele que um dia, iria gozar do supremo bem nas Montanhas Azuis, a sonhada Mansão dos Bravos.
Quando ao florescer da frondosa mamaurana, a sua igara passava junto do barranco do rio, embaixo da verde ramagem debruçada sobre a corrente, as brisas sacudiam os galhos e derramavam nos negros cabelos do filho de tuxaua uma chuva de flores.
Nas tardes purpúreas, quantas vezes a sua canoa, ruborescia pelo poente e tauxiada de sombras esquias de árvores marginais, não subia em demanda da ponta do Turumã, onde se quedava, solitário, até ao meio dia!
-"Que pescaria é essa, filho, que se prolonga com as sombras, à hora em que só Anhangá se deleita em correr as terras e as águas? Não ouviste alguma vez a sua voz temerosa trazida pelo vento gemedor? Meu filho, meu filhinho! Anhangá espalha pelo capim rasteiro e pelas folhas dos arbustos as sementes das dores que matam!"
Assim falava a pobre mãe do tapuia quando via o filho entrar na habitação paterna à horas mortas, vindo dos lados do rio, e ficar insone, noite a dentro, com as pernas pendentes na rede, os cotovelos fincados nos joelhos e os olhos fundos e tristes a olharem, pungentemente, para fora, para o rio, para a noite, para o seio negro da escuridão...
As enternecidas palavras de sua mãe, Jaguarari respondia apenas com um olhar, o olhar daqueles olhos tristes e fundos, onde se sentia a crispação de vertigens das profundezas.
-"Filho, não faz muito tempo, a alegria esvoaçava à flor de teus olhos como as marrequinhas à tona da lagoa. Por que foi ela fazer tão longe de ti e de mim o seu ninho?".
-"Mãe!", murmurava ele apenas, fazendo um vago gesto.
E o seu corpo, que tinha o frescor e a seiva do talo de uma palmeira, murchava sempre; o cupim roaz picava-lhe o coração.
Ele acompanhava ainda o tuxaua nas expedições de caça e o seu braço não treme ao rugido do canguçu. Mas, ao cair da tarde, evita os jovens guerreiros que armam laços para prenderem as aves silvestres e foge dos grupos que vagueiam pelas coroas do rio atirando redes de pesca.
Sozinho, salta na leve igara e voa até à ponta do Turumã, onde os companheiros o vêem de longe, com os olhos fitos no espelho das águas, solitário e tristonho como o meditativo maguari.
Um dia, cheia de apreensões funestas, sua mãe exclama:
-"Filho, os juruparis perversos envenenaram o ar que respirar. Acauã (pássaro agoureiro) vem agora cantar à nossa porta. Teu pai quer fazer longe daqui a nova taba para nossa gente. Só assim a ave da alegria voltará a esvoaçar em teus olhos..."
Depois de profundo silêncio, Jaguarari suspirou:
-"Mãe, eu a vi!....Eu a vi, mãe, boiando em flor como os nenúfares nas águas do igarapé. É linda como a lua nas noites mais claras. Eu a vi mãe! Seus cabelos tem a cor das flores do pau-d'arco e o brilho do sol; suas faces tirando o rosado das penas da colhereira e das flores da sapucaia. Os passarinhos que mais cantam não cantam como ela; ela é bela como nenhum homem das tabas do Grande Rio viu, nem verá. Ela cantava e à sua voz a própria cachoeira do Turumã cessou de roncar e parou, de certo para ouvi-la. Ela olhou para mim, ó mãe, e estendeu-me os braços. Depois, repartiram-se as águas e ela desceu para sua casa, que foi esquecida lá no fundo pelo céu, num tempo não muito longe, quando o céu se estendia como embaixo de nós, a campina matizada de flores, antes de subir e de arquear sobre as nossas cabeças a sua concha estrelada. Mas eu quero vê-la novamente, eu quero ouvir ainda o seu canto!"
A tapuia horrorizada clamou:
-"Foge, foge daquele maldito lugar! Nunca mais a tua igara demande à ponta do Turumã. Foge, meu filho! Tu viste a Iara! O seu canto é agonia! Foge Jaguarari! É a Iara! De dentro de seus olhos verdes te espia a Morte!"
E em soluços a velha tapuia atirou-se por terra.
No dia seguinte, à hora em que os trocazes aos casais passam alto, fendendo os ares em demanda do pouso da noite, a igara de Jaguarari deslizava nas águas do Rio Negro.
Os mancebos manaus que o viram passar, disseram:
-"Lá vai Jaguarari pescar tucunaré".
Mas, de súbito, de um grupo de mulheres que lavavam ânforas de barro à beira do rio partiu um grito:
-"Corre, gente. Corre, vem ver!"
Acudiram os jovens e pararam atônitos, olhando a barra o horizonte, fendia as águas com Jaguarari de pé, abertos os braços, como uma grande ave selvagem prestes a desferir o vôo. A igara parecia marchar em direção ao sol, a fim de precipitar-se no seu disco abrasado. E ao lado do jovem guerreiro, enlaçando-o como a beijá-lo, surgia, num halo de luz argêntea que se destacava no rubor do poente, um corpo alvo, de formas harmoniosas, coroado de longas madeixas de fios de ouro a esvoaçarem.
-"A Iara! A Iara!" - conclamavam, em grito uníssono, os guerreiros e moças dos manaus para o meio da taba.
E foi a última vez que viram o filho do tuxaua navegar nas águas escuras do rio...
IARA, RAINHA DOS RIOS
A Sereia Brasileira, atende pelo nome de Iara e vive no fundo os rios, à sombra das florestas virgens. Conta a lenda amazônica que uma noite um índio sonhou com uma bela mulher de cabelos loiros, olhos azuis e pele muito clara. Tal fada estava à entrada de um imenso castelo de cristal recoberto de ouro e safiras de onde vinha uma música celestial. O jovem apaixonou-se à primeira vista e ouviu a linda mulher lhe propor amor eterno. Um dia navegando pelo rio, o índio viu formar-se sobre as águas uma choupana e, por detrás da janela, apareceu a mulher de seus sonhos que lhe sorria. Apaixonado e enfeitiçado foi até a choupana que flutuava sobre as águas. O pai do índio pode ver que o corpo da mulher tinha uma cauda, igual a de um peixe, e que, agarrando seu filho, se jogou na água, mergulhando para nunca mais voltar.
Alguns indígenas e caboclos juram já ter visto a Iara, como passou a ser chamada. em muitos rios e igarapés. A crença neste mito é tão grande, que, pelos lugares em que mora a Iara, segundo a tradição, ninguém tem coragem de passar em determinada hora da tarde. Em algumas ocasiões, comenta-se, ela mostra-se com pernas para logo em seguida transformar-se em sereia. É nesta forma que atrai suas vítimas. Para livrar-se do poder de sedução de Iara, aconselham os indígenas, deve-se comer muito alho ou esfregá-lo por todo o corpo.
Numerosas são as lendas em torno de Iara, seus encantamentos e artimanhas. É o mito que mais inspirou poetas brasileiros. José de Alencar, por exemplo, incluiu no romance "O Troco de Ipê" um conto sobre a mãe-d'água, em que figura um palácio de ouro e de brilhantes no fundo do mar.
O simbolismo mais conhecido da sereia é o da sedução mortal. Com toda certeza, ela é uma tentadora (" As asa da sereia são o amor de uma mulher, que está pronta a dar e a retomar", escreve Pierre de Beauvais). Mas a paixão inflamável que ela inspira é perigosa, porque provém do sonho e do inconsciente, e por isso é sonho insensato, fantasma irreal. Para preservar-se da paixão ("o amor é cego!"), é necessário, como Ulisses agarra-se à dura realidade do mastro. Sob a influência egípcia, na qual a alma do morto era representada na forma de pássaro com cabeça humana, a sereia se tornou a representação simbólica da alma do morto que falhou em seu destino e transformou-se em vampiro devorador.
ARQUÉTIPO DA TRANSFORMAÇÃO
No livro de M. Esther Harding, "Os Mistérios da Mulher", está descrita uma impressionante associação entre as fases da lua com as fases da deusa. A cada fase da lua, conta, a deusa veste um diferente traje de escamas, que é o traje de seu instinto.
Os peixes eram dedicados a Atárgatis, a deusa lua de Ascalon, uma das formas de Ishtar, que era algumas vezes representada com rabo de peixe. Esta representação refere-se a extrema inconsciência do instinto feminino. Aqui a satisfação do instinto é essencial, não importando as conseqüências do tal ato.
O aspecto deusa-sereia corresponde ao período da Lua Escura, onde ela está inteiramente sob o domínio do instinto. Esta fase pertence à esfera dos mistérios da mulher e, para um homem olhar para a ela nestes dias, significa "doença e morte", pois estará agindo como fêmea, desprezando qualquer consideração humana. É a "Viúva Negra" nos seus melhores dias. Muitas mulheres não estão conscientes do poder desta qualidade feminina e então, um efeito desastroso pode ocorrer em virtude de sua desatenção ao papel de destruidora de seu amor. Mas há também algumas, que conscientes do seu poder sobre os homens o usam inescrupulosamente para vantagens pessoais. Para aceitar o poder desta Lua, sem se deixar sucumbir a ele, é necessário autodisciplina e sacrifício do auto-erotismo.
Uma mulher que se confronta com tais aspectos na escuridão de seu coração pode aprender a lidar melhor com este conflito em vez, de tornar-se responsável de atitudes irreconciliáveis e opostas. Em verdade, esta energia instintiva se transformará em algo bom e utilizável na vida. Esta energia fluirá naturalmente em seus relacionamentos aprofundando-os, ou pode tornar-se um escape direcionado à um trabalho criativo, ou ainda, suprirá a força motriz que torna possível a construção de uma personalidade mais completa, fundamentada tanto no lado sombrio quanto no aspecto luminoso.
Bibliografia consultada
Os Mistérios da Mulher - M. Esther Harding
Bibliografia do Folclore Brasileiro - Braulio do Nascimento
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