Glamourização de Um Acidente
Pedro Pofírio
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Jobim não largou os holofotes para falar como catedrático do acidente do avião francês na rota Rio-Paris. Por pouco não se vestiu de piloto, como fez na Amazônia com o uniforme do Exército. Tão chocante como a queda do avião da Air France é a sua glamourização, como se estivéssemos diante de um "reality show", com direito a todo tipo de exibicionismo, a uma multiforme carga televisiva e a pencas de páginas nos nossos jornais diários.
Desde a manhã de segunda-feira, dia 1 de junho de 2009, não se fala de outra coisa. A impressão que me assalta é a de que um verdadeiro exército quer tirar uma casquinha na perda de 228 seres humanos, cada um querendo mostrar maiores conhecimentos e mais doloridos sentimentos sobre o acidente fatal.
Exibicionismo sob Medida
Como maior expressão desse espetáculo macabro, a figura do sr. Nelson Azevedo Jobim, de cabelos cortados, com uma varinha metálica à mão, um mapa luminoso às costas e a pose de catedrático na matéria. Desde o impacto da queda, o nosso ambicioso ministro da Defesa, que voltou correndo da África, não larga os holofotes, deixando ao fundo, bem longe, os militares e profissionais que realmente estão envolvidos nas buscas naquela imensidão do Atlântico e na equação das múltiplas possibilidades para a queda de um avião tão moderno e tido como a última palavra da tecnologia aeronáutica.
A sua transformação em mestre da cerimônia fúnebre é uma forma de politizar a tragédia, na afirmação de que o governo age em solidariedade aos brasileiros enlutados com a queda do avião francês. E tem a ver com o triunfalismo boçal do Sr. Luiz Inácio, que aproveitou a cena para declarar na pequena Guatemala que "um país que pode achar petróleo a 6 mil metros de profundidade pode achar um avião a 2 mil metros".
À frente da informação oficial, o ministro da Defesa também faz a adequação necessária, de forma a dosá-la no contexto de uma enormidade de indagações e analogias. Um técnico talvez não tivesse esse tipo de cautela. A febre espetaculosa que o acidente provocou serve também para mostrar a quantas chegou a arte de encher linguiça para manter a tragédia em cartaz. É preciso fazer qualquer pergunta ou acrescentar qualquer coisa para alimentar o noticiário. Especula-se sobre todas as hipóteses como se o quebra-cabeças proposto funcionasse como um excitador de populações vulneráveis à projeção dos sentimentos.
A Única Notícia: O Avião Caiu
O fato concreto já aconteceu na dureza da única notícia infensa à maquiagem: um Airbus da Air France, com 228 pessoas a bordo, caiu em alto mar no vôo Rio-Paris, em meio a tormentas detectáveis a tempo de desvios acauteladores. Nessa mesma madrugada, outras aeronaves passaram por essa área sem nenhum registro de qualquer desconforto. O vôo 447 não chegou ao seu destino, a lendária capital da França. Mesmo assim, nossa mídia fez questão de cozinhar a informação. Por muitas horas insistiu em que o Airbus DESAPARECEU, costurando a teia de uma tragédia desdobrável, até admitir o óbvio: desde o primeiro momento se sabia que o aparelho simplesmente CAIU no mar.
A Busca dos Culpados
A partir daí, uma mídia difusora produz um atraente espetáculo de luzes e cores. Até pessoas que nunca se imaginaram num avião elevam seus instintos às nuvens, num envolvimento inconsciente muito mais agudo do que ocorre nas tragédias emblemáticas da violência urbana, sejam os assassinatos animalescos entre nós, sejam aquelas ações irracionais nos Estados Unidos, tão bem reportadas por Mike Moore em "Tiros em Columbine". O noticiário intenso, embora sem aparentes segundas intenções, monopoliza os receptores das preocupações gerais. Cidadãos de todas as classes sociais querem saber até se há sobreviventes, porque a crença em milagres é infalível entre os que acreditam nos poderes divinos.
Mas o espetáculo opera sua dinâmica. No bojo dessa expectativa tênue, assumidamente utópica, vem junto a busca dos culpados. Sim, a mais exigente cláusula de compensação da alma humana é o aparecimento dos responsáveis pela tragédia. Junto com a busca dos corpos e dos destroços, é preciso promover a caça aos culpados. À falta deles, pela variedade de hipóteses, serve um bode expiatório. Na generalização do luto e da dor, a indignação punitiva mescla-se com o medo contemplativo. Nesses dias, haverá uma redução de passageiros para além-mar. Logo nesse instante, em que os números haviam registrado um aumento de 15% nas viagens internacionais de brasileiros em 2008. Só para os Estados Unidos, 770 mil viajantes.
Mas a glamourização que assusta e inibe também banaliza, acostumando as pessoas com a idéia de que o acidente faz parte das fatalidades a que todos estamos expostos. Cronistas lembram que o transporte aéreo "é o mais seguro do mundo" e contam com os números. Uma pesquisa divulgada há alguns anos pela revista americana Newsweek mostrou que o transporte aéreo registra média de 0,01 morte a cada 100 milhões de milhas viajadas, enquanto os trens somam 0,04 e os carros, 0,94. Especialistas garantem: a frota mais nova e a evolução dos sistemas de segurança do setor tornaram os acidentes mais raros - mesmo com uma quantidade cada vez maior de vôos por todo o planeta. O número anual de acidentes aéreos, que estava em 61 no fim da década de 80, vem caindo ano a ano. Entre 1991 e 1996, ficou na casa dos 50; entre 1997 e 1999, caiu para 40; entre 2000 e 2002, para 30. Em 2003, foram apenas 19 acidentes, e em 2004, 20. Nesse mesmo período, entre os anos 80 e agora, subiu o número de vôos no mundo. Se em 1989 eram 12,3 milhões, em 1996 eram 16 milhões, e em 2005, cerca de 22,2 milhões de decolagens.
Figurantes no Show
A divulgação de opiniões e análises alimenta a polêmica e corrói corações e mentes. Para dizer que está bem das asas, um piloto da TAM informou ter passado na área ainda antes do amanhecer, quando de cima das nuvens viu bolas de fogo a 11 mil metros de distância. Depois, outros, já em operações, fotografaram manchas de combustíveis, que seriam do aparelho acidentado. Logo, não houve explosão. É uma guerra subliminar alimentada por vaidades e por interesses econômicos, estes sempre inquietos e insaciáveis. É o show descrito com sutileza pelo jovem Bruno Mendonça: "Especialistas de todas as áreas apareciam: um raio teria desintegrado o avião, terrorismo não foi descartado e a verdadeira causa ainda seria apurada. Aí sempre aparece alguém que deveria ter embarcado no vôo, mas de última hora desistiu e torna-se um iluminado, alguém recebeu um sinal, e a imprensa entrevista, tira fotos, conta a história inteira.
Outro personagem típico que vira notícia é um vidente, pai de santo, curandeiro, entidade demoníaca ou paranormal que previu tudo, mandou carta para Deus e o mundo, mas só a divulgou depois. Mas isso dá Ibope, acesso, causa interesse de tudo mundo, então é noticiado".
A Alegria Tétrica
Causou-me repugnância também o aparecimento de salvados da tragédia. Não há prazer mais deprimente do que o expresso por um ilustre desconhecido que procurou aparecer como aquele que "nasceu de novo" pelo passaporte vencido, embora houvesse comprado passagem para o vôo sinistrado. Qual é o mérito? E agora, ficou feliz por não estar entre os 228 desaparecidos? Terá um orgasmo mais prolongado pela "ressurreição"?
O exibicionismo é realmente uma manifestação de patologia múltipla e enigmática, que pode chegar aos píncaros da torpeza.
Bem, o objetivo desta crônica era tão somente expressar a minha indignação diante da exagerada exposição da tragédia aérea e dessa sequência de dramatizações espetaculosas, que refletem um momento de inspiração desprezível no cotidiano envenenado da sociedade humana.
Era só o que tinha a dizer.
Veja a matéria no blog Pedro Pofírio Livre
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COMENTÁRIOS
VÔO 447
(Comentário do Rivaldo Cavalcante)
O que há de nauseante nestes cruéis momentos de tragédias é a irreverência, a tremenda falta de caridade humana, diante de um espetáculo que, envolve as pessoas com as marcas da maior maldade que podemos admitir. Todo mundo aparece para dar pitaco, indicar soluções e descobrir causas e culpados.
Na realidade a mídia - cruel como sempre foi - aproveita as beiradas para alardear os fatos. Procura, sobretudo, cavar situações terríveis de conjecturas desnaturadas, acerca do que aconteceu e de como aconteceu. Os noticiários são esmiuçados e reprisadas de forma a nos incredulizar; tantas são as divergentes e vampirescas formas de pincelar os quadros desta tragédia incomum, que consternou o mundo inteiro.
As cenas repetitivas das buscas. A ânsia de tornar o desastre muito mais trágico do que foi. A crueldade explícita de inventar soluções, razões, meios e modos para descobrir mais profundamente a face cruel da tragédia. As voltas ao passado para reviver outras tragédias pungentes. Meu Deus... Quanta crueldade! Quanta exploração da dor humana diante de um fato que nos abalou profundamente. Mas que haverá explicações técnicas, explicações com o espírito caritativo de consolar as vítimas do desastre e não de arrancar os cadáveres de onde eles estejam. Para expô-los à comiseração pública.
Mídia cruel e fúnebre esta nossa!
Rivaldo Cavalcante
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(Comentário do Eraldo)
A mídia é cruel em todos os aspectos. Realça tragédias, enaltece os sofrimentos, ridicularizando o sofrimento com espetáculos malsãos. Oportunistas de plantão tornam-se populares nesses eventos catastróficos.
Cumprimento o articulista Pedro Profírio.
Abraços,
Eraldo
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A Morte não é Nada " Santo Agostinho " **** |
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